A Joana caminhava devagar pela rua, arrastando os pés no piloto automático. O dia tinha sido insuportavelmente longo: duas reuniões, um conflito com um fornecedor, relatórios que teve de refazer por causa de um erro do estagiário. Àquela hora, a cabeça latejava e os pensamentos se embaralhavam. A Joana só queria uma coisa: chegar em casa, tirar os sapatos desconfortáveis, tomar um banho quente e cair no sono.
O telemóvel vibrou na bolsa. A Joana pegou nele com relutância, imaginando que fosse o marido, o Rui, a perguntar o que haveria para o jantar. Mas, ao olhar para o ecrã, surpreendeu-se ao ver um número desconhecido. Normalmente, não atendia chamadas de números desconhecidos, mas algo lhe dizia que devia responder.
— Estou? — disse, cansada, continuando a caminhar em direção a casa.
— Onde é que andas, ó burra? Já estamos aqui à porta há uma hora, estamos esfomeados! — ouviu-se do outro lado um voz grossa e irritada.
A Joana parou a meio do passeio, como se as pernas tivessem enraizado. O mundo continuava a andar à sua volta, as pessoas contornavam-na, apressadas nos seus afazeres, mas ela ficou parada, incapaz de acreditar no que estava a ouvir. Aquele tom áspero, com aquelas entonações tão características, pertencia à tia do Rui, a Dona Manuela.
— Como é, desculpe? — perguntou a Joana, na esperança de ter ouvido mal.
— Estás surda, ó parva? — ouviu-se um resmungo irritado do outro lado. — Chegámos! Eu, a tua sogra e o Zé. Já estamos à porta da tua casa há uma eternidade. Esqueceste-te, não foi?
A Joana franziu a testa, confusa, tentando lembrar-se do que poderia ter esquecido. Não era nenhum feriado, nem aniversário. Ninguém a tinha avisado sobre a visita dos familiares do Rui.
— Dona Manuela, desculpe, mas eu não sabia que vinham — respondeu com cautela.
— Como não sabias? — exclamou a mulher, indignada. — O Rui combinou connosco há uma semana! Devia ter-te avisado.
A Joana respirou fundo. Ótimo, mais uma surpresa do marido. O Rui tinha o hábito de se “esquecer” de comunicar coisas importantes, só para não ter de lidar com as consequências.
— O Rui não me disse nada — respondeu com firmeza. — Estive a trabalhar até tarde, chego a casa em meia hora.
— Meia hora?! — a voz da Dona Manuela transbordava indignação. — Estamos esfomeados, cansados da viagem! Não podes vir mais depressa?
A Joana sentiu a irritação crescer dentro de si. Os familiares do marido apareciam sem aviso, eram mal-educados e ainda esperavam que ela largasse tudo para os ir servir… Passou-lhe pela cabeça: *E se eu tivesse combinado ir dormir a casa da Ana? Ou se estivesse numa viagem de trabalho?*
— Olhe, eu não sabia que vinham — disse, mantendo a calma. — Dê-me tempo para chegar a casa.
— Não temos tempo para esperar! — bufou a Dona Manuela. — O Zé já está a ficar maluco de fome!
O Zé era o primo do Rui, um homem de trinta e cinco anos que ainda vivia com a mãe e não sabia fazer um ovo estrelado.
— E onde está o Rui? — perguntou a Joana, sentindo a raiva ferver.
— Eu é que sei? Não atende o telemóvel. Deve estar atrasado — respondeu a Dona Manuela, impaciente. — Então, vens ou não?
A Joana desligou a chamada sem se despedir. O coração batia forte de indignação. Ligou para o Rui. Chamada perdida, depois o gravador de voz. Tentou de novo — o mesmo resultado. Ela conhecia o truque: o Rui simplesmente não atendia quando sabia que a conversa ia ser desagradável.
*Sabia perfeitamente o que estava a acontecer*, pensou a Joana. *E escondeu-se como um cobarde. Mais uma vez, deixou a responsabilidade toda para mim.*
O telemóvel tocou de novo. Desta vez, era a sogra, a Dona Fernanda.
— Joaninha, meu amor, estás quase a chegar? — a voz da sogra era melosa, falsamente doce. — Estamos aqui a congelar, e a Manuela já está à beira de um ataque.
— Dona Fernanda, peço desculpa, mas eu não sabia que vinham — disse a Joana, mantendo um tom civilizado. — O Rui não me avisou.
— Ah, não? — a sogra fingiu surpresa. — Ele jurou que tinha falado contigo! Enfim, coisas que acontecem. Anda, despacha-te, querida. A Manuela fica insuportável quando está com fome.
A Joana fechou os olhos, contando mentalmente até dez. Era sempre a mesma coisa — esperavam que ela largasse tudo para resolver uma situação que nem sequer criara.
*Porque é que eu tenho de pagar pela irresponsabilidade alheia?* questionou-se. *Desde quando é que isso é normal?*
De repente, percebeu que não estava zangada só com os familiares, mas com a própria situação. Com o facto de todos acharem normal ligar-lhe e exigir que ela corresse a servi-los.
— Dona Fernanda, estou a ir para casa, mas não esperem que chegue e vá logo cozinhar — disse com firmeza. — Estou esgotada, tive um dia difícil. Se estão com fome, há um café ali perto.
— Joaninha, mas como é que podes dizer isso? — a voz da sogra ficou magoada. — Que café? Somos família! Além disso, o Zé tem alergias, não pode comer comida de cafés.
*A sério?* pensou a Joana, sarcástica, lembrando-se da última vez que o Zé devorou um hambúrguer como se não comesse há semanas.
Ela sabia perfeitamente que os familiares do Rui estavam habituados a que todos se virassem para os servir. Lá fora, as nuvens escuras ameaçavam tempestade, e só de pensar nisso, a Joana sentiu um cansaço imenso.
O que raio estava a acontecer? Porque é que ela tinha de correr para casa para satisfazer caprichos de gente que nem sequer se dignou a avisar? E porque é que o marido se escondia como um cobarde, deixando-a resolver tudo sozinha?
*E se… não for?* surgiu-lhe um pensamento rebelde.
A Joana virou-se e começou a caminhar na direção oposta à de casa. Ali perto, havia um café acolhedor que servia uma massa divina e um tiramisù que ela queria provar há tempos. Entrou decidida, escolheu uma mesa perto da janela.
— Boa tarde — cumprimentou a empregada, sorridente. — O que vai querer?
— Uma carbonara e um copo de vinho branco — a Joana percebeu, de repente, que estava esfomeada. — E para sobremesa, um tiramisù, por favor.
Mal fez o pedido, o telemóvel tocou novamente. Era a Dona Manuela. A Joana rejeitou a chamada. Um minuto depois, nova chamada — desta vez, da sogra. Depois, uma mensagem do Rui: *Onde estás? A minha mãe diz que não atendes. Estão à porta.*
A Joana sorriu. *Ah, o marido resolveu aparecer quando sentiu o perigo.*
*«Atrasada no trabalho, vou chegar tarde»*, respondeu secamente e silenciou o telemóvel.
A empregada trouxe o vinho. A Joana tomou um gole e sentA Joana sorriu, saboreando cada garfada da massa, enquanto o telemóvel vibrava sem parar em cima da mesa, e pela primeira vez em anos sentiu-se verdadeiramente livre.
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