**Diário de um Homem – A Lição da Leonor**
Hoje foi um daqueles dias que parece não ter fim. A Leonor chegou a casa exausta, os pés arrastando-se pelo chão como se tivessem toneladas. Dois relatórios atrasados, uma reunião interminável com um fornecedor teimoso e um estagiário que apagou metade dos dados do sistema — ela mal conseguia pensar direito. Só queria chegar a casa, livrar-se dos sapatos apertados, um banho quente e cair na cama.
O telemóvel vibrou na bolsa. Era provavelmente o marido, o Rui, a perguntar o que haveria para jantar. Mas, ao olhar para o ecrã, um número desconhecido apareceu. Normalmente, a Leonor não atendia chamadas de números que não conhecia, mas algo lhe disse que desta vez devia responder.
— Estou? — disse, com a voz carregada de cansaço, continuando a caminhar em direção a casa.
— Onde é que andas, burra? Estamos à porta do teu prédio há uma hora, cheios de fome! — um voz grossa ecoou do outro lado.
A Leonor parou no meio do passeio como se tivesse batido numa parede. O mundo continuava a passar à sua volta, mas ela ficou ali, sem acreditar no que estava a ouvir. A voz áspera, cheia de falsidade — era a tia do Rui, a Dona Lurdes.
— Desculpe? — perguntou, esperando ter ouvido mal.
— Estás surda? — resmungou a Dona Lurdes. — Chegámos! Eu, a tua sogra e o Zé Carlos. Já estamos aqui há uma eternidade. Esqueceste-te?
A Leonor franziu a testa, tentando recordar-se se havia algum compromisso. Não era aniversário, nem feriado. Ninguém lhe tinha avisado de visita.
— Dona Lurdes, desculpe, mas ninguém me disse que vinhamos — respondeu, tentando manter a calma.
— Como assim não sabias? — bufou a mulher. — O Rui combinou connosco há uma semana! Devia ter-te avisado.
A Leonor respirou fundo. Claro. Mais uma das “esquecidas” do Rui, para não ter de assumir responsabilidade.
— O Rui não me disse nada — afirmou, secamente. — Estou atrasada no trabalho, chego aí em quarenta minutos.
— Quarenta?! — a voz da Dona Lurdes subiu de tom. — Estamos a morrer de fome! Não podes vir mais depressa?
A irritação começou a crescer dentro da Leonor. Familiares que apareciam sem aviso, mal-educados, exigindo que ela deixasse tudo para os atender? Teve um pensamento fugaz: *E se eu tivesse ido passar a noite em casa da Joana? Ou se estivesse numa viagem de trabalho?*
— Olhe, não fui avisada — disse, mantendo o tom calmo. — Vou para casa, mas não esperem que chegue a correr.
— Não temos tempo para esperar! — a Dona Lurdes bufou novamente. — O Zé Carlos está a ficar nervoso com tanta fome!
O Zé Carlos — o primo do Rui, um homem de trinta e cinco anos que ainda vivia com a mãe e não sabia fritar um ovo.
— E o Rui, onde está? — perguntou a Leonor, sentindo a raiva a ferver.
— Não sei, não atende o telemóvel — respondeu a Dona Lurdes, impaciente. — Então, vens ou não?
A Leonor desligou sem se despedir. O coração batia forte. Ligou ao Rui — chamada rejeitada. Tentou de novo, nada. O truque habitual: evitar conflitos.
*”Ele sabe bem o que se passa,”* pensou. *”E esconde-se. Como sempre.”*
O telemóvel tocou de novo. Desta vez, era a sogra, a Dona Margarida.
— Leonorzinha, meu amor, estás a chegar? — a voz melosa. — Estamos aqui com frio, e a Lurdes já está a ficar irritada.
— Dona Margarida, lamento, mas ninguém me avisou — respondeu, mantendo a educação. — O Rui não disse nada.
— Ah, não? — fingiu surpresa. — Ele jurou-me que já tinha combinado contigo! Bem, estas coisas acontecem. Anda, vem depressa, a Lurdes sem comer é insuportável.
A Leonor fechou os olhos, contando até dez. Tudo se repetia — esperavam que ela largasse tudo para resolver uma situação que não era culpa dela.
*”Porque é que eu tenho de pagar pelos erros dos outros?”* pensou. *”Porque é que isto é normal?”*
De repente, percebeu que a raiva não era só dos familiares, mas da situação. Do facto de acharem que ela devia parar a sua vida para os servir.
— Dona Margarida, estou a caminho, mas não contem com um banquete — disse, firme. — Estou exausta. Se têm fome, há um café ali perto.
— Leonor, que conversa é essa? — a voz da sogra ficou melindrada. — Café? Somos família! Além disso, o Zé Carlos é alérgico à comida de fora.
*”Claro que é,”* pensou a Leonor, sarcástica, lembrando-se do último almoço em que o Zé Carlos devorou um hambúrguer como se não houvesse amanhã.
Ela sabia bem que os familiares do Rui estavam habituados a que o mundo girasse à volta deles. Olhou para o céu, onde nuvens escuras se acumulavam. Uma tempestade aproximava-se, e só de pensar nisso, o cansaço apertou-a ainda mais.
Porque é que ela tinha de correr para casa para satisfazer caprichos de gente que nem se deu ao trabalho de avisar? Porque é que o Rui se escondia, deixando-a lidar sozinha com o problema?
*”E porque não?”* Uma ideia ousada surgiu.
A Leonor virou-se e seguiu na direção oposta a casa. Ali na esquina havia um pequeno restaurante com uma massa à carbonara divina e um tiramisu de morrer. Sem hesitar, entrou e sentou-se à mesa.
— Boa noite, o que deseja? — a empregada sorriu.
— Massa carbonara e um copo de vinho branco, por favor — a fome bateu de repente. — E para sobremesa, tiramisu.
Mal fez o pedido, o telemóvel tocou. Dona Lurdes. Rejeitou. Um minuto depois, a sogra. Depois, uma mensagem do Rui: *”Onde estás? A mãe diz que não atendes. Estão à espera.”*
A Leonor sorriu. Finalmente, o marido decidiu aparecer quando a coisa apertou.
*”Tive que ficar até mais tarde no trabalho,”* respondeu secamente e silenciou o telemóvel.
O vinho chegou. Bebeu um gole e sentiu a tensão a desvanecer. Afinal, que mal havia se os familiares esperassem um pouco? Ou se resolvessem o problema sozinhos? O céu não ia cair.
O telemóvel, em silêncio, continuou a vibrar. Ela desligou-o completamente. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma estranha mistura de culpa e libertação. Lembrou-se das palavras de uma amiga: *”Tu resolves sempre os problemas dos outros, que depois se tornam teus.”*
Que pena só agora perceber quantas vezes deixou que abusassem dela. Toda essa corrida ao primeiro chamado, desculpas por erros alheios, vontade de agradar a todos… Para quê? Para ser chamada de *burra*?
A massa estava incrível. Ou talvez fosse a liberdade de colocar-se em primeiro lugar. Comeu devagar, saboreou a sobremesa, bebeu o café sem pressa. Parecia pouco, mas o peso saiu-lheA Leonor sorriu para si mesma, percebendo que, às vezes, basta dizer “não” uma vez para ganhar o respeito de todos – inclusive o seu próprio.
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