A terra caiu pesadamente sobre a tampa do caixão. Cada batida surda atravessava o peito de Estela. A sua filha, Inês, tinha morrido subitamente numa estrada encharcada pela chuva, com apenas dezoito anos. O marido de Estela, Vítor, destacava-se entre os presentes, o rosto uma máscara impenetrável. Em vinte anos de casamento, ela nunca conseguira decifrar o que se escondia por trás daquela expressão fechada.
“Está na hora de ir,” disse ele quando o último luto se dissipou. No carro, falou de forma prática e firme. “Precisamos ir ao centro de doações. Temos de recolher os pertences da Inês e distribuí-los já.”
Um frio cortante apertou o coração de Estela. “Vítor, o funeral acabou há poucas horas.”
“Exatamente por isso,” respondeu ele, os olhos fixos na estrada. “Ficar agarrado só piora. É como arrancar um penso. Rápido é mais gentil.”
Aquele homem parecia um estranho. Ou talvez ela estivesse finalmente a vê-lo como ele era. Naquela noite, acordou com a voz abafada dele no corredor. “Está tudo sob controle,” sussurrou ao telefone. “Amanhã os objetos vão. Não, ela não suspeita.”
Na manhã seguinte, Vítor carregou caixas para o quarto. “Os mudanças vêm depois de amanhã,” anunciou. “Hoje, empacotamos tudo.” Entregou-lhe uma lista com cada detalhe da vida de Inês organizado para descarte.
“Vítor, não consigo,” suplicou, a voz a quebrar.
A expressão dele distorceu-se de raiva. “Para de te agarrar ao passado! Achas que isto é fácil para mim?” Depois, suavizou e envolveu-a nos braços. “Desculpa,” murmurou. “Isto vai ajudar-nos a ambos a recuperar. Confia em mim.”
Ela assentiu, demasiado cansada para lutar. Talvez ele tivesse razão.
Sozinha, Estela entrou no quarto de Inês. Era luminoso e quente, preservado no tempo. Sentou-se na cama onde tinham sussurrado durante horas sobre a escola, os rapazes e o sonho de Inês em estudar biologia marinha. Abriu o armário e começou a dobrar as roupas, cada uma uma memória. Um vestido de formatura. Um cachecol. Depois, o vestido de seda preferido da Inês. Estela levou-o ao rosto, respirando o cheio da filha, já desvanecido.
Vítor apareceu sem bater. Arrancou-lhe o vestido das mãos. “Isto não ajuda ninguém agora. Não te tortures.” Atirou-o para um saco de doações e saiu.
Estela olhou para a porta, a determinação a apertar-se. Algo não estava bem. O seu olhar pousou na mochila de Inês. Dentro, entre os livros, encontrou um bilhete dobrado, escrito à pressa na letra desengonçada da filha.
**Mãe, se leres isto, procura atrás da minha cama imediatamente. Vais perceber.**
O coração acelerou. Ajoelhou-se. Uma caixa preta selada estava colada ao canto mais escondido da cama. Os passos de Vítor ecoavam no corredor quando ela a tocou.
Ao jantar, Estela escondera a caixa na ventilação da casa de banho, o único lugar que Vítor nunca verificava. Desceu as escadas com a máscara de dor bem colocada.
“Fiz uma grande doação à escola,” disse Vítor, sobre a comida entregue. “Vão colocar uma placa em memória da Inês.”
Estela observou-o atentamente. Onde arranjara dinheiro? Os papéis que encontrara revelavam dívidas. A menos que… fosse o seguro.
“Que generoso,” respondeu com calma, “considerando as nossas finanças.”
“Os negócios melhoraram,” encolheu os ombros. “À memória da Inês.” Ergueu o copo. Quando se virou, ela viu um breve tremor na mão sobre a sua bebida. Paranoia? Ou um alerta?
“Vou tomar um sedativo,” disse, levantando-se. Mais tarde, no quarto, Vítor esperava com água e dois comprimidos desconhecidos. Observou-a enquanto ela fingia engolir. Assim que saiu, cuspiu-os para um lenço. Testaria mais tarde.
De manhã, sabia que precisava agir. “Preciso passar pelo trabalho,” mentiu. “Documentos para assinar.”
“Vou chamar um táxi,” insistiu ele. “Vou acompanhar o percurso para teres segurança.”
Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Ele vigiava-lhe cada movimento. Improvisou, saindo uma rua antes e a enviar uma mensagem à única pessoa em que confiava: Ricardo Filipe, um velho amigo da família e investigador reformado. **Urgente. Vida ou morte.**
Encontraram-se vinte minutos depois num café à beira-rio. “Estela,” murmurou ele, preocupado. “O que se passa?”
“A Inês não morreu por acidente,” exclamou. “O Vítor planeou tudo pelo seguro. Agora quer livrar-se de mim também.”
O rosto de Ricardo endureceu quando ela lhe mostrou fotografias dos documentos. Inês, esperta como sempre, juntara tudo: as dívidas de Vítor, a amante, as apólices avultadas e mensagens comprometedoras de um mecânico sobre “resolver o problema da enteada”.
“E isto,” acrescentou, mostrando o lenço com os comprimidos.
Ricardo fotografou-os. “Vou mandar analisar. Se tiver razão, é suficiente. Usa isto.” Entregou-lhe um microfone do tamanho de um botão. “Grava direto para mim. Leva-o a falar.”
“Tenho de voltar,” disse. “Os originais ainda estão em casa.”
“Cuidado, Estela,” avisou. “A tua segurança vem primeiro.”
Quando regressou, os empacotadores ainda lá estavam. Vítor supervisionava-os com frieza. “Onde estiveste?” exigiu.
“A reunião demorou mais,” respondeu calmamente.
Enquanto ele os observava, ela escapou para a casa de banho. A caixa tinha desaparecido.
O terror agarrou-a. Ele sabia. Saiu e congelou. Vítor esperava por ela.
“Perdeste alguma coisa?” perguntou suavemente. Balançou um *pendrive*—aquele da caixa de Inês.
“A Inês era inteligente,” disse baixinho. “Demasiado. Tornou-se um problema.”
“Um problema para quê?” perguntou Estela, o coração aos saltos. O microfone gravava.
“Para uma vida nova,” encolheu os ombros. “Cansei-me deste casamento, desta casa. Precisava de dinheiro. O seguro da Inês foi o primeiro passo. O teu é o próximo.” O tom era prático. “Um acidente trágico. Um marido em luto recebe o seguro e desaparece.”
“És repugnante.”
“Sou prático,” respondeu gelado. “A Inês estragou tudo. Agora tu fazes o mesmo.” Aproximou-se. “Com quem te encontraste? Quem viu os documentos?”
Ela calou-se. Ele pegou no telemóvel. “Não importa. O GPS é útil.” Mostrou-lhe o trajeto do táxi, que terminava no Café Ribeira. “Agora, quem estava lá?” Acedeu às câmaras de segurança.
Os empacotadores gritaram lá em baixo. Vítor arrastou-a para o armário e, com destreza, tapou-lhe os pulsos e a boca com fita. “Fica quieta,” rosnou antes de trancar a porta.
O pânico cresceu. O microfone. Ricardo tinha de ter ouvido. Mas chegaria a tempo? Viu o telemóvel no toucador. Com as mãos amarradas, escreveu às cEstela olhou para o relógio, contando os segundos até que a sirene da polícia finalmente rasgasse o silêncio e libertasse o seu coração do último vestígio de medo.


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