A terra caiu pesadamente sobre a tampa do caixão. Cada batida surda atravessava o peito de Mariana. Beatriz, sua filha, morreu de repente numa estrada molhada pela chuva, com apenas dezoito anos. O marido de Mariana, Guilherme, destacava-se no meio da multidão, o rosto uma máscara que ela nunca conseguira decifrar. Em duas décadas de casamento, ele nunca revelara o que escondia por trás daquela expressão fechada.
“Está na hora de ir,” ele disse, quando o último lamento se dissipou. No carro, falou com voz firme e prática. “Temos de ir ao centro de doações. Vamos recolher as coisas da Beatriz e despachá-las hoje mesmo.”
Mariana sentiu um gelo apertar-lhe o coração. “Guilherme, o funeral acabou há poucas horas.”
“Exatamente,” respondeu ele, os olhos fixos na estrada. “Quanto mais demorar, pior. É como arrancar um penso rápido. Dói menos.”
Aquele homem parecia-lhe um estranho. Ou talvez ela estivesse finalmente a vê-lo como ele era. Naquela noite, acordou com a voz sussurrante dele no corredor. “Está tudo sob controlo,” murmurou ao telefone. “Amanhã as coisas vão. Não, ela não desconfia.”
Na manhã seguinte, Guilherme carregou caixas para o quarto. “Os estivadores vêm depois de amanhã,” declarou. “Hoje, arrumamos tudo.” Entregou-lhe uma lista meticulosa com cada pedaço da vida de Beatriz pronta para ser descartada.
“Guilherme, eu não consigo,” suplicou, a voz a quebrar.
O rosto dele contorceu-se de raiva. “Para de te agarrar ao passado! Achas que isto é fácil para mim?” Depois, suavizou e abraçou-a. “Desculpa,” murmurou. “Isto vai ajudar-nos a ambos a sarar. Confia em mim.”
Ela anuiu, cansada demais para lutar. Talvez ele tivesse razão.
Sozinha, Mariana entrou no quarto de Beatriz. Era claro, quente, parado no tempo. Sentou-se na cama onde tinham conversado durante horas sobre a escola, os rapazes e o sonho de Beatriz de estudar biologia marinha. Abriu o armário e começou a dobrar as roupas, cada uma uma memória. Um vestido de formatura. Um cachecol. Depois, o vestido de seda preferido dela. Mariana pressionou-o contra o rosto, aspirando o cheiro da filha, já fraco.
Guilherme apareceu sem bater. Arrancou-lhe o vestido das mãos. “Isto não vai ajudar ninguém agora. Não te tortures.” Atirou-o para um saco de doações e saiu.
Mariana olhou para a porta, a determinação a apertar-lhe o peito. Algo não batia certo. O olhar pousou na mochila de Beatriz. Lá dentro, entre os livros, encontrou um bilhete dobrado, escrito à pressa pela mão desconfortável da filha.
*Mãe, se estás a ler isto, procura atrás da minha cama agora. Vais entender.*
O coração disparou. Ajoelhou-se. Uma caixa preta selada estava presa com fita adesiva no canto mais escondido da cama. Os passos de Guilherme ecoavam no corredor quando ela a tocou.
Ao jantar, Mariana já escondera a caixa no exaustor da casa de banho, o único lugar que Guilherme nunca verificava. Desceu as escadas com a máscara da dor no rosto.
“Fiz uma grande doação à escola,” disse Guilherme, sobre a comida entregue. “Vão pôr uma placa em memória da Beatriz.”
Mariana estudou-o. Onde arranjara aquele dinheiro? Os papéis que encontrara mostravam dívidas. A menos que… seguros.
“Que generoso,” respondeu calmamente, “tendo em conta as nossas finanças.”
“Os negócios melhoraram,” encolheu os ombros. “À memória da Beatriz.” Ergueu o copo. Ao virar-se, ela notou um movimento rápido da mão sobre a sua bebida. Paranoia? Ou um aviso?
“Vou tomar um calmante,” disse, levantando-se. Mais tarde, no quarto, Guilherme esperava com água e dois comprimidos desconhecidos. Observou-a atentamente enquanto ela fingia engolir. Assim que saiu, cuspiu-os para um lenço. Testaria mais tarde.
Pela manhã, sabia que tinha de agir. “Preciso de ir ao trabalho mentir,” inventou. “Documentos para assinar.”
“Chamo um táxi,” insistiu ele. “Vou seguir o percurso para ter a certeza de que chegas bem.”
Um frio correu-lhe pelo corpo. Ele vigiava cada movimento. Improvisou, saindo um quarteirão antes e mandando mensagem à única pessoa em quem confiava: Manuel Ribeiro, um velho amigo da família e detetive reformado. *Urgente. Vida ou morte.*
Encontraram-se vinte minutos depois num café à beira-rio. “Mariana,” murmurou ele, preocupado. “O que se passa?”
“A Beatriz não morreu por acidente,” gritou. “O Guilherme planeou tudo pelo seguro. Agora quer livrar-se de mim também.”
O rosto de Manuel endureceu quando ela mostrou as fotos dos documentos. Beatriz, sagaz como sempre, juntara tudo: dívidas de Guilherme, a amante, apólices generosas e mensagens comprometedoras de um mecânico sobre *”resolver o problema da enteada.”*
“E isto,” acrescentou, mostrando o lenço com os comprimidos.
Manuel fotografou-os. “Vou mandar analisar. Se eu estiver certo, é suficiente. Usa isto.” Deu-lhe um microfone do tamanho de um botão. “Grava direto para mim. Põe-no a falar.”
“Tenho de voltar,” disse. “Os originais ainda estão em casa.”
“Cuidado, Mariana,” avisou. “A tua segurança vem primeiro.”
Quando regressou, os estivadores ainda lá estavam. Guilherme supervisionava-os, frio. “Onde estiveste?” exigiu.
“A reunião demorou,” respondeu, serena.
Enquanto ele distraía-se, escapou para a casa de banho. A caixa desaparecera.
O terror apoderou-se dela. Ele sabia. Ao sair, congelou. Guilherme esperava por ela.
“Perdeste alguma coisa?” perguntou suavemente. Balançou uma pen drive—a que estava na caixa de Beatriz.
“A Beatriz era esperta,” disse baixinho. “Demasiado. TornaMariana olhou para a casa pela última vez, sentindo o peso da dor e da libertação, sabendo que, embora nada trouxesse Beatriz de volta, pelo menos agora a verdade e a justiça prevaleciam.


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