Centenas de motociclistas apareceram na cerimónia fúnebre de um menino que ninguém queria enterrar porque o pai estava preso por assassinato.

O agente funerário tinha-nos ligado depois de ficar sozinho na capela durante duas horas, à espera que alguém — quem quer que fosse — viesse despedir-se do pequeno Tiago Mendes.

O rapaz morrera de leucemia após lutar três anos, tendo apenas a avó como visita, mas ela sofrera um ataque cardíaco no dia anterior ao funeral.

Os serviços sociais disseram que cumpriram seu dever, a família de acolhimento lavou as mãos, e a igreja recusou-se a associar-se ao filho de um assassino.

Assim, aquele menino inocente, que passara os últimos meses a perguntar se o pai ainda o amava, seria sepultado sozinho num cemitério de indigentes, com apenas um número na campa.

Foi então que o Zé Gigante, líder dos Lobos da Estrada, fez o chamamento: “Nenhuma criança desce à terra sozinha”, disse. “Não interessa de quem é filho.”

O que nenhum de nós sabia era que o pai de Tiago, trancado numa cela de segurança máxima, acabara de receber a notícia da morte do filho e planeava suicidar-se na mesma noite.

Os guardas estavam atentos, mas todos sabíamos como isso costuma acabar. O que aconteceu a seguir não só deu ao menino a despedida que merecia, mas salvou um homem que já não via razão para viver.

Estava a tomar o meu café da manhã na sede do clube quando chegou a chamada. O Rui Pires, agente funerário da Paz Eterna, parecia ter chorado.

“Duarte, preciso de ajuda”, disse. “Estou numa situação que não consigo resolver sozinho.”

O Rui enterrara a minha mulher há cinco anos, tratara-a com dignidade quando o cancro a reduziu a 40 quilos. Eu devia-lhe.

“O que aconteceu?”

“Há um menino aqui. Dez anos. Morreu ontem no hospital distrital. Ninguém veio. Ninguém virá.”

“Menino de acolhimento?”

“Pior. O pai é o Marco Mendes.”

Conhecia o nome. Todos conheciam. Marco Mendes matara três pessoas num negócio de droga mal resolvido há quatro anos. Prisão perpétua. Fora notícia em todo o lado.

“O rapaz lutou três anos contra a leucemia”, continuou o Rui. “A avó era tudo o que ele tinha, e ela teve um enfarte ontem. Está nos cuidados intensivos, talvez não resista. O Estado diz para enterrá-lo. A família de acolhimento lavou as mãos. Até a minha equipa se recusa. Dizem que dá má sorte sepultar o filho de um assassino.”

“O que precisas?”

“Pessoas para o caixão. Alguém que testemunhe. Ele é só uma criança, Duarte. Não escolheu o pai.”

Levantei-me, decidido. “Dá-me duas horas.”

“Duarte, só preciso de umas quatro pessoas—”

“Terás mais que quatro.”

Desliguei e acionei a buzina da sede. Em minutos, trinta e sete Lobos da Estrada estavam reunidos.

“Irmãos”, disse. “Há um menino de dez anos prestes a ser enterrado sozinho porque o pai está na prisão. O miúdo morreu de cancro. Ninguém o reclama. Ninguém o chorará.”

Silêncio na sala.

“Vou ao funeral”, continuei. “Não peço que venham. Isto não é assunto do clube. Mas se acreditam que nenhuma criança deve ser enterrada sozinha, encontrem-me na Paz Eterna em noventa minutos.”

O Velho Lobo falou primeiro. “O meu neto tem dez anos.”

“O meu também”, disse o Martelo.

“O meu filho teria dez”, murmurou o Vinho. “Se o bêbado não tivesse…”

Não precisou de terminar.

O Zé Gigante levantou-se. “Chamem os outros clubes. Todos. Isto não é sobre territórios ou insígnias. Isto é sobre uma criança.”

As chamadas foram feitas. Águias do Sol. Cavaleiros de Aço. Lobos Negros. Clubes que não se falavam há anos. Clubes com rixas de sangue. Mas quando ouviram falar de Tiago Mendes, todos disseram o mesmo: “Estaremos lá.”

Fui primeiro à funerária. O Rui estava à porta da capela, perdido.

“Duarte, não era isto que eu—”

O ruído interrompeu-o. Primeiro os Lobos, quarenta e três motas. Depois as Águias, cinquenta. Os Cavaleiros trouxeram trinta e cinco. Os Lobos Negros, vinte e oito.

E continuavam a chegar. Veteranos de guerra. Motociclistas cristãos. Grupos de fim-de-semana que souberam pelas redes. Às 14h, o estacionamento da Paz Eterna e todas as ruas num raio de três quarteirões estavam tomadas por motocicletas.

O Rui olhou espantado. “Devem ser trezentas motas.”

“Trezentas e doze”, corrigiu o Zé Gigante. “Contámos.”

O Rui levou-nos à capela, onde um caixão branco e pequeno estava sozinho, com um ramo de flores do supermercado ao lado.

“Só isto?”, perguntou a Cobra, voz rouca.

“O hospital mandou as flores”, admitiu o Rui. “Procedimento habitual.”

“Que se lixe o procedimento”, murmurou alguém.

A capela começou a encher. Homens duros, muitos já com lágrimas, passando pelo caixãozinho. Alguém trouxe um ursinho. Outro, uma mini mota. Em breve, o caixão estava rodeado de ofertas — brinquedos, flores, até um colete de couro com “Motociclista Honorário” bordado.

Mas foi o Talhante, um veterano das Águias, que partiu a todos. Aproximou-se do caixão, colocou uma foto e disse: “Este era o meu filho, o João. Tinha a mesma idade quando a leucemia o levou. Também não o salvei, Tiago. Mas agora não estás sozinho. O João vai mostrar-te o caminho lá em cima.”

Um a um, os motociclistas falaram. Não sobre Tiago — nenhum o conhecera — mas sobre filhos perdidos, inocência destruída, sobre como nenhuma criança merece morrer sozinha, independentemente dos pecados do pai.

Então, o Rui recebeu uma chamada. Saiu, voltou pálido.

“É da prisão”, disse. “O Marco Mendes… soube. Sobre o Tiago. Sobre o funeral. Os guardas estão de prevenção. Ele pergunta se alguém… se alguém veio pelo filho.”

Silêncio na capela.

O Zé Gigante levantou-se. “Põe-no em alta-voz.”

O Rui hesitou, mas ligou. Instantes depois, uma voz partida encheu o espaço.

“Estão aí? Por favor, alguém está com o meu menino?”

“Marco Mendes”, disse o Zé com firmeza. “Fala o José Gonçalves, líder dos Lobos da Estrada. Estou aqui com trezentos e doze motociclistas de dezassete clubes diferentes. Todos vieram pelo Tiago.”

Silêncio. Depois, soluços. Chorando como um homem que perdera tudo.

“Ele adorava motas”, o Marco engasgou-se. “Antes de eu estragar tudo. Tinha uma mini Harley. Dormia com ela. Dizia que queria andar de mota quando crescesse.”

“Ele vai andar”, prometeu o Zé. “Com a gente. A cada Memorial, a cada passeio solidário, o Tiago estará connosco. É a promessa de todos os clubes aqui.”

“Nem pude dizer adeus”, sussurrou o Marco. “Nem segurá-lo. Nem dizer-lhe que o amo.”E no final, enquanto as motas rugiam em homenagem, o vento levou o som até a cela do Marco, onde ele, pela primeira vez em anos, sentiu que o filho estava em paz.


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