Beatriz arrastava os pés pela calçada, movendo-se como um autómato. O dia fora insuportavelmente longo: duas reuniões, um conflito com um fornecedor, relatórios que teve de refazer devido ao erro de um estagiário. Ao final da tarde, a cabeça latejava e os pensamentos embaralhavam-se. Tudo o que desejava era chegar a casa, tirar os sapatos desconfortáveis, tomar um banho quente e mergulhar no sono.

O telemóvel vibrou na mala. Beatriz pegou-o com relutância, imaginando que fosse o marido, Nuno, a perguntar o que devia preparar para o jantar. Ao olhar para o ecrã, porém, deparou-se com um número desconhecido. Normalmente não atendia a chamadas desconhecidas, mas algo lhe dizia que devia responder.

— Estou? — murmurou, enquanto continuava a caminhar em direção a casa.

— Onde é que andas, ó tonta? Já estamos aqui à porta há uma hora, cheios de fome! — berrou uma voz rouca do outro lado.

Beatriz parou no meio do passeio, como se raízes a prendessem ao chão. O mundo continuou a andar, pessoas desviavam-se dela, mas ela permanecia imóvel, incapaz de acreditar no que ouvira. Aquele tom áspero, com aquelas inflexões características, só podia ser da tia do marido, Amélia.

— Como disse? — perguntou, na esperança de ter ouvido mal.

— Não ouves bem? — bufou a mulher. — Chegámos! Eu, a tua sogra e o Rui. Estamos aqui no prédio há um tempão. Esqueceste-te?

Beatriz franziu a testa, tentando lembrar-se de alguma ocasião especial. Não era aniversário nem feriado. Ninguém a avisara da visita.

— Amélia, desculpe, mas eu não sabia que vinham — respondeu com cautela.

— Como assim não sabias? — indignou-se a tia. — O Nuno combinou connosco há uma semana! Devia ter-te avisado.

Beatriz respirou fundo. Claro. Mais uma surpresa do marido. Nuno tinha o hábito de “esquecer” coisas importantes para evitar responsabilidades.

— Nuno não me disse nada — afirmou com firmeza. — Estou a sair do trabalho, chego em quarenta minutos.

— Quarenta?! — a voz de Amélia transbordava irritação. — Estamos famintos, cansados da viagem! Não consegues vir mais depressa?

O incómodo crescia dentro dela. Os familiares do marido apareciam sem aviso, mal-educados, exigindo que ela largasse tudo para os servir… Uma ideia cruzou-lhe a mente: “E se eu tivesse ficado em casa da Joana hoje? Ou se tivesse viajado a trabalho?”

— Olhe, eu não estava à espera da vossa visita — respondeu, mantendo a calma. — Dêem-me tempo para chegar a casa.

— Não temos tempo para esperar! — rosnou Amélia. — O Rui já está a ficar impaciente com a fome!

Rui, o primo do marido, um homem de trinta e cinco anos que ainda vivia com a mãe e não sabia fritar um ovo.

— E onde está o Nuno? — perguntou Beatriz, sentindo a raiva a crescer.

— E eu sei? Não atende o telemóvel. Deve estar atrasado — resmungou Amélia. — Então, vens ou não?

Beatriz desligou a chamada sem se despedir. O coração batia forte de indignação. Ligou para o marido. Toques intermináveis, depois o gravador. Tentou outra vez — o mesmo resultado. Conhecia o truque: Nuno evitava atender quando sabia que a conversa seria desagradável.

“Então ele sabe bem o que se passa”, pensou. “E esconde-se como um cobarde. Como sempre, deixa tudo nas minhas mãos.”

O telemóvel tocou novamente. Desta vez, o nome da sogra, Maria José, apareceu no ecrã.

— Beatriz, meu amor, estás quase? — a voz era melosa. — Estamos aqui a gelar, e a Amélia já não aguenta mais.

— Maria José, peço desculpa, mas não sabia da vossa visita — respondeu, mantendo um tom educado. — Nuno não me avisou.

— Ah, não? — fingiu surpresa a sogra. — Ele jurou que tinha combinado contigo! Bem, coisas que acontecem. Anda, despacha-te, querida. A Amélia fica insuportável quando está com fome.

Beatriz fechou os olhos, contando até dez mentalmente. Tudo se repetia — esperavam que ela deixasse tudo para resolver problemas que não criara.

“Por que tenho de pagar pela irresponsabilidade dos outros? Por que isto é considerado normal?”

De repente, percebeu que a raiva não era dirigida aos familiares, mas à situação. Ao facto de todos acharem natural exigir que ela os servisse sem questionar.

— Maria José, estou a caminho, mas não espere que chegue e comece logo a cozinhar — falou com firmeza. — Estou exausta, tive um dia difícil. Se estão com fome, há um café perto de casa.

— Beatriz, mas que conversa é essa? — a voz da sogra ficou magoada. — Café? Somos família! Além disso, o Rui tem alergia a comida de restaurante.

“Sério?”, pensou Beatriz com ironia, lembrando-se de como Rui devorava fast-food na última visita como se nunca tivesse comido na vida.

Percebia claramente que os familiares do marido estavam habituados a ser servidos. Lá fora, nuvens carregadas anunciavam tempestade. O cansaço apertava-a só de imaginar o que a esperava.

O que se passava afinal? Por que devia correr para casa para satisfazer caprichos de quem nem sequer se dignara a avisar? Por que é que o marido se escondia, deixando-a resolver tudo sozinha?

“E se… não fosse?” — a ideia surgiu como um raio.

Beatriz virou-se e seguiu em direção oposta à de casa. Ali perto ficava um café acolhedor, onde serviam uma bela massa à carbonara e um tiramisú divinal que há muito queria provar. Entrou com determinação e sentou-se junto à janela.

— Boa tarde — a empregada sorriu. — O que deseja?

— Uma carbonara e um copo de vinho branco — Beatriz percebeu então o quanto estava faminta. — E um tiramisú, por favor.

Logo que fez o pedido, o telemóvel tocou outra vez — Amélia. Ignorou. Um minuto depois, nova chamada, desta vez da sogra. Depois, uma mensagem de Nuno: “Onde estás? A minha mãe diz que não atendes. Estão à espera em casa.”

Beatriz sorriu. Finalmente, o marido aparecia quando a situação apertava.

“Demorei-me no trabalho, chego tarde”, respondeu secamente e silenciou o telemóvel.

A empregada trouxe o vinho. Beatriz deu um gole e sentiu a tensão a desvanecer. Afinal, o que havia de tão grave em deixá-los esperar? Ou resolverem o problema sozinhos? O céu não cairia por causa disso.

O telemóvel, no silêncio, continuou a vibrar com chamadas incessantes. Beatriz desligou-o completamente. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo estranho — uma mistura de culpa e libertação. Lembrou-se das palavras de uma amiga: “Tu resolves demasiados problemas alheios que acabam por ser teus.”

Que pena só agora começar a perceber quantas vezes se deixara pisar. Toda essa correria ao primeiro toque, desculpas por erros alheios, esforço para agradar a todos… E para quê? Para ser chamada de “tonta” pela tia do marido?

A massa estava surpreendentemente boa. Ou talvez fosse a**Final sentence (finishing the story):**

E, enquanto saboreava o último pedaço de tiramisú, Beatriz sorriu, sabendo que a partir daquele momento sua vida seria diferente — porque finalmente aprendera que colocar-se em primeiro lugar não era egoísmo, mas sim uma forma de ensinar aos outros como merecia ser tratada.


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