A Ana arrastava os pés pela calçada, quase no modo automático. O dia tinha sido interminável: duas reuniões chatas, uma discussão com um fornecedor, relatórios que teve de refazer porque o estagiário se enganou. Àquela hora, a cabeça latejava e os pensamentos misturavam-se. A única coisa que desejava era chegar a casa, livrar-se dos sapatos desconfortáveis, tomar um banho quente e cair na cama.

O telemóvel vibrou na mala. Ana pegou nele com má vontade, achando que seria o marido, o João, a perguntar o que havia para jantar. Mas, ao olhar para o ecrã, viu um número desconhecido. Normalmente não atendia a chamadas dessas, mas algo lhe disse que devia responder.

— Estou? — disse, cansada, continuando a caminhar.

— Onde é que estás, ó carneira? Já estamos aqui há uma hora à porta do teu prédio, esfomeados! — uma voz áspera cortou-lhe os ouvidos.

Ana parou de repente no meio do passeio. O mundo continuava à sua volta, gente a passar, mas ela ficou ali, petrificada. Aquele tom agressivo, aquele jeito de falar — só podia ser a tia do marido, a Dona Fátima.

— Como é, desculpe? — perguntou, esperando ter ouvido mal.

— Estás surda? — bufou a voz do outro lado. — Chegámos! Eu, a tua sogra e o Tiago. Estamos aqui à espera há uma eternidade. Esqueceste-te?

Ana franziu a testa, tentando perceber o que se passava. Hoje não era aniversário, nem feriado. Ninguém avisara que os familiares do João viriam.

— Dona Fátima, desculpe, mas eu não sabia que vinham — disse, cautelosa.

— Como assim não sabias? — indignou-se a mulher. — O João combinou connosco há uma semana! Devia ter-te avisado.

Ana respirou fundo. Mais um presente do marido. O João tinha o vício de “esquecer” coisas importantes para evitar responsabilidade.

— O João não me disse nada — respondeu, firme. — Estive ocupada no trabalho, chego daqui a quarenta minutos.

— Quarenta?! — a indignação na voz de Dona Fátima era palpável. — Estamos esfomeados, cansados da viagem! Não podes vir mais rápido?

Ana sentiu o sangue a ferver. Familiares do marido apareciam sem aviso, tratavam-na mal, e ainda queriam que ela largasse tudo para os servir? Teve um pensamento súbito: “E se eu tivesse ido dormir a casa da minha amiga? Ou estivesse de viagem?”

— Olhe, eu não estava à espera da visita — manteve a calma. — Dêem-me tempo para chegar a casa.

— Não temos tempo para esperar! — resmungou Dona Fátima. — O Tiago já está a tremer de fome!

O Tiago, o primo do João, trinta e poucos anos, que ainda vivia com a mãe e nem um ovo estrelado sabia fazer.

— E o João, onde está? — perguntou Ana, sentindo a raiva aumentar.

— Ai, quem sabe? Não atende o telefone. Deve estar atrasado — respondeu a tia, impaciente. — Então, vens ou não?

Ana desligou sem se despedir. O coração batia rápido de raiva. Ligou para o João. Chamada após chamada, só voicemail. Conhecia o truque: ele fugia ao telefone quando sabia que a conversa seria difícil.

“Então ele sabe e está a encolher-se”, pensou. “E a responsabilidade cai toda em cima de mim, como sempre.”

O telemóvel tocou de novo. Desta vez, era a sogra, a Dona Lurdes.

— Aninha, meu amor, estás a chegar? — a voz melosa da sogra contrastava com a fúria da tia. — Estamos aqui a congelar, e a Fátima já está a ficar nervosa.

— Dona Lurdes, peço desculpa, mas não sabia que vinham — tentou manter a calma. — O João não me avisou.

— Ah, não? — a sogra fingiu surpresa. — Ele jurou que tinha combinado tudo! Bem, acontece. Anda, despacha-te, querida. A Fátima fica insuportável quando está com fome.

Ana fechou os olhos, contando até dez mentalmente. Mais uma vez, esperavam que ela deixasse tudo para resolver uma situação que nem criou.

“Porque é que eu é que tenho de me responsabilizar pela irresponsabilidade dos outros? Isto é normal?”

De repente, apercebeu-se de que a raiva não era só dos familiares, mas da situação. Do facto de acharem que podiam exigir que ela se desdobrasse por eles sem aviso prévio.

— Dona Lurdes, estou a caminho, mas não contem que chego e já vou para a cozinha — disse com firmeza. — Estou cansada, foi um dia difícil. Se estão com fome, há um café ao lado.

— Aninha, mas o que é isso? — a voz da sogra ficou melindrada. — Um café? Somos família! Além disso, o Tiago é alérgico à comida de restaurante.

“Ah, é mesmo?” — pensou Ana, sarcástica, lembrando-se da última vez que o Tiago devorou um hambúrguer como se não houvesse amanhã.

Sabia perfeitamente que os familiares do marido estavam habituados a que o mundo girasse à volta deles. Lá fora, o céu escurecia, e Ana sentiu um cansaço enorme.

O que se passava, afinal? Porque é que ela tinha de correr para casa para servir caprichos de quem nem sequer avisou? E porque é que o João não atendia o telefone, deixando-a sozinha nisto?

“E porque não…?” — uma ideia ousada surgiu.

Ana virou-se e dirigiu-se para o outro lado da rua. Ali, num cantinho, havia uma pastelaria com bolos de sonho e um café que ela adorava. Entrou decidida e escolheu uma mesa junto à janela.

— Boa tarde, o que deseja? — a empregada sorriu.

— Um pastel de nata e um galão, por favor. — Ana sentiu a fome súbita.

O telemóvel tocou de novo — Dona Fátima. Rejeitou a chamada. Depois, foi a sogra. Depois, uma mensagem do João: “Onde estás? A minha mãe diz que não atendes. Estão à porta.”

Ana sorriu. Finalmente, o marido apareceu quando a coisa apertou.

— Atrasada no trabalho, chego tarde — respondeu secamente e silenciou o telefone.

O galão chegou. Deu um gole e sentiu a tensão a aliviar. Afinal, que mal havia em deixá-los à espera um pouco? Ou resolverem-se sozinhos? O mundo não iria acabar.

O telemóvel continuou a vibrar, mas Ana desligou-o de vez. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo estranho — uma mistura de culpa e libertação. Lembrou-se do que a sua amiga lhe dizia sempre: “Tu resolves problemas dos outros que depois ficam a ser teus.”

Que pena só agora perceber quantas vezes se deixou espezinhar. Tantas atropeladas, desculpas por erros alheios, procurar agradar a todos… E para quê? Para ser chamada de “carneira” pela tia do marido?

O pastel de nata estava divinal. Ou talvez fosse a liberdade de colocar-se em primeiro lugar. Não teve pressa — saboreou o bolo, bebeu o café devagar. Uma pequena vitória.

Teve de voltar a casa, claro. Esperava um escândalo, mas a casa estava em silêncio. Só havia dois pacotes de bolachas vazios deixados à porta — o “agradecimento” pela espera.

Na sala, o João fingia estar entretidoAna entrou, olhou para o João, que fingia não a ver, e sorriu, pensando como um simples pastel de nata tinha mudado tudo.


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