**Dia 15 de Junho**
Porque ele é bom…
Vitória deixou as malas pesadas no chão do corredor.
— Uhuuu! A mamã chegou!!! — gritaram as meninas, correndo da sala para abraçá-la.
Ela sorriu. Finalmente, estava em casa! Quatro meses de cursos de especialização, uma residência estudantil decadente, exames… tudo ficou para trás. Abraçou e beijou as filhas, que se aconchegaram contra ela. E os presentes? Claro que não podiam faltar!
— Inês, este é para ti! — a mãe entregou à mais velha um casaco felpudo e bonito. Inês, sempre vaidosa, soltou um gritinho de alegria e correu para o quarto. Mas voltou antes de chegar, abraçando a mãe com timidez:
— Obrigada, mãe! Era mesmo o que eu queria! — e desapareceu de novo.
— Matilde, este é o teu! — e a mãe tirou da mala algo azul e branco, macio e estranho.
A avó Olímpia ergueu as sobrancelhas, perplexa. Que diabo era aquilo nas mãos pequeninas da neta mais nova? Um brinquedo?
O coelho olhava para Matilde com olhos oblíquos. A cabeça era dura, de papel maché, mas a barriga e as patas eram macias, recheadas de serragem. Era branco, com pelo artificial curto, vestido numa camisa azul de botões tradicionais.
Até aí, tudo bem. Mas…
Dificilmente se imaginaria um brinquedo mais feio. Os olhos desnivelados do coelho eram de tamanhos diferentes, um mais alto que o outro. O focinho adunco inclinava-se para o lado, e nos lábios finos congelara-se um sorriso torto, quase pedindo desculpas pela sua feiura.
— Credo! — exclamou Inês, já com o casaco novo. — Mãe, que bicho é esse?!
— Filha… — suspirou a avó Olímpia. — Por amor de Deus, em todo o Porto não encontraste um brinquedo mais bonito? Isto só serve para espantar as aves do milharal!
Matilde estremeceu, apertou o coelho com força e fugiu para o quarto.
— Mãe, percebo o que sentes — disse Vitória. — A loja de brinquedos no Porto é enorme, cheia de opções… mas ele estava sozinho, na prateleira mais baixa. Deu-me pena. E achei que ele ficou feliz quando o peguei… Sei lá, parecia que me agradeceu.
A avó balançou a cabeça, incrédula. A filha, médica de renome, ainda tinha coração de criança… a infância pós-guerra não permitiu luxos como brinquedos bonitos.
O coelho horrível, feito numa fábrica distante, tornou-se o preferido de Matilde. Recebeu um nome solene: Gaspar. As duas consoares pronunciadas com o sotaque doce da menina só tornavam o bicho mais engraçado.
Durante o dia, Gaspar esperava pacientemente pelo regresso da escola. À noite, ouvia histórias sobre as amigas de Matilde. A menina adormecia com o focinho do coelho encostado à sua face.
Os anos voaram.
As lavagens frequentes deixaram o pelo branco amarelado — a serragem tingira o tecido. A camisa azul desbotara. Gaspar estava mais feio do que nunca, mas Matilde amava-o ainda mais, sentindo pena dele.
Aos dezassete anos de Matilde, a irmã mais velha teve um filho, Tomás. Assim que o bebé percebeu o mundo à sua volta, o coelho tornou-se o seu herói. Antes de dormir, o miúdo sussurrava coisas doces ao ouvido de Gaspar, que sorria como antes sorrira à tia.
Um dia, Tomás, relutante, entregou o coelho ao primo mais novo, o pequeno João, que chorava. As lágrimas de frustração viraram-se em alegria quando o miúdo saiu a abraçar Gaspar com força. O coelho ganhava um novo amigo.
Ninguém se surpreendeu quando João, resoluto, deu o brinquedo a uma menina desconhecida que chorava no parque, sussurrando algo ao ouvido de Gaspar. A miúda olhou para ele, espantada, mas aceitou o presente.
Aí, a história poderia acabar — Gaspar deixara a família, indo parar às mãos de outra criança. Mas…
Anos depois, Vitória, agora velhinha, visitou a amiga de juventude, Leonor, tão cabelos brancos quanto ela. As duas riram de histórias antigas, e Vitória, do nada, contou a saga do coelho feio.
— Por acaso é deste bicho que falas? — Leonor puxou de trás das costas algo informe, desbotado…
— Gaspar! — exclamou Vitória.
— Não sei se é Gaspar ou Jeremias, mas ando há anos a tentar deitar esta coisa fora! A bisneta Carlota não deixa… Deram-lho no parque quando ela caiu e chorava…
Vitória pegou no brinquedo. Lembrou-se daquele verão distante, das mãos pequenas de Matilde a apertar Gaspar contra o peito… e sorriu.
**Lição do dia:** Às vezes, o que parece feio aos nossos olhos é precioso noutro coração. A bondade transforma até os mais disformes em tesouros.
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